Rejeito: Diretor Pedro de Filippis e a sensibilidade em documentário sobre crimes de Mariana e Brumadinho

Misturar sensibilidade e denúncia pode ser uma tarefa muito difícil, com o risco de se cair em uma abordagem sensacionalista. “Rejeito” (2023), documentário de Pedro de Filippis, entrega esse conjunto de forma muito delicada e cuidadosa, no melhor dos sentidos.

Conversei com o diretor sobre sua relação com o tema, as escolhas na abordagem escolhida e o olhar sensível na hora de produzir um documentário com imagens tão marcantes e uma história tão pesada.

O filme Rejeito chega aos cinemas de todo o Brasil no dia 30 de outubro, às vésperas do desastre da Barragem de Mariana, em Minas Gerais, completar 10 anos. O documentário é um retrato profundo sobre o impacto da mineração na vida de comunidades atingidas e um convite à reflexão sobre o modelo de exploração que marca nosso país.

Marias (2024)

Focado na participação de mulheres na vida política e no cotidiano do Brasil, o documentário Marias chega aos cinemas pela Descoloniza Filmes e se revela um projeto de vida da diretora e roteirista Ludmila Curi.

Em 2012, a cineasta conheceu Maria Prestes (pseudônimo de Altamira Rodrigues Sobral Prestes), militante comunista nordestina e segunda esposa de Luís Carlos Prestes. É a partir desse encontro que a ideia para o documentário surge.

Iniciando com imagens de Maria Bonita e com a reflexão da diretora sobre como muitas das mulheres representadas nas histórias são apresentadas a partir da relação com homens, o filme usa sua protagonista para falar de outras mulheres importantes para o Brasil em diversos sentidos.

Ludmila teve o privilégio de se aproximar do cotidiano familiar de Maria Prestes. O filme nos mergulha em situações do cotidiano dessa mulher, passando desde uma conversa com a família até falas em um evento universitário. Enquanto a acompanha, o espectador é levado a se conectar com as histórias de outras mulheres que o roteiro destaca: Maria Bonita, Olga Benário Prestes, Dilma Rousseff e Marielle Franco.

Também é interessante acompanhar os comentários metalinguísticos que a diretora faz enquanto nos apresenta a impressionante história de vida de Altamira. Em determinado momento, enquanto a neta de Maria Prestes simula o papel da avó em casa, Ludmila questiona a reconstituição que realiza ao perceber que estava domesticando a figura da jovem.

E é a partir daí que o documentário, que até então parecia bastante convencional, tem sua grande virada. Além das informações apresentadas, o espectador se depara com um questionamento: por que Maria não aparece no filme?

A resposta para a pergunta só vem perto do final, em uma nova virada que torna o documentário ainda mais forte. Essa força também se revela quando a diretora nos leva a Moscou para narrar o período em que Altamira e sua família enfrentaram o exílio, onde Maria ficou surpresa ao se deparar com as mulheres trabalhando em diversos setores, sendo médicas e trabalhando em obras. A realidade era essa por conta da quantidade de homens perdidos para a guerra.

É impossível não se emocionar, especialmente com as raras e íntimas imagens de Marielle Franco, que discute política de forma casual, tomando a réplica de uma cerveja russa, em uma cena tão simples quanto poderosa. Marias tem um recorte específico, mas o roteiro de Ludmila Curi conecta com maestria a história de todas essas mulheres e as humaniza, destacando o quadro geral de sua relevância histórica e social no Brasil.

O Vento Sopra Através dos Túmulos (2024)

48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Exibido no Festival de Berlim

Na tentativa de fuga de um documentário denso sobre ascensão fascista nos dias atuais, o diretor Travis Wilkerson acerta ao mesclar duros fatos sobre o neonazismo na Croácia com o carismático personagem do detetive Ivan Peric, que com muitas dificuldades investiga o assassinato de turistas na cidade de Split. Esse trabalho se torna complicado uma vez que os visitantes não são exatamente bem vistos no país.

O formato híbrido e a alternância de tons de O Vento Sopra Através dos Túmulos (Through the Graves the Wind Is Blowing) fazem com que humor trazido pela figura caricata do detetive amenize as histórias pesadas que o documentarista traz enquanto nos mostra, sempre em preto e branco, grandiosas estruturas abandonadas pela cidade, passando por shoppings e construções olímpicas, todas pichadas com símbolos nazistas.

Nessas paisagens, Wilkerson fala sobre a queda da Iugoslávia e reflete sobre a perseguição a antifascistas enquanto exibe imagens de uma árvore torta no meio desses monumentos largados. Essa escolha de imagens é muito bem executada e, embora se torne repetitiva e até cansativa, embasa bem o peso dos relatos que o diretor traz em seu texto.

Quebrando essa repetição em um dos momentos mais marcantes do filme, Travis, que morou por anos com a família na Croácia e produziu o documentário perto do fim desse período, fala sobre a dificuldade de representar visualmente algumas passagens históricas. Ele escolhe usar o som do mar em movimento misturado ao barulho de tiros enquanto figuras vermelhas se sobrepõem na tela. O efeito é hipnotizante e de forma inusitada remete aos também mesmerizantes vídeos de TikTok em que uma pessoa narra uma história enquanto as imagens mostradas não necessariamente tem a ver com o que está sendo contado.

Em outro momento que chama atenção, Wilkerson propõe um experimento ao questionar se o público já se perguntou quantos de seus vizinhos são nazistas. Ele provoca ao refletir se já não seria muita coisa se a resposta para a pergunta fosse “apenas um”. O diretor então sai pelas ruas e fotografa os símbolos nazistas que estão em paredes e postes, encontrando mais de 200 marcas em cerca de meia hora de caminhada.

Na busca de mais impacto, entretanto, algumas dessas cenas acabam soando muito “montadas”, por mais que estejam bem colocadas dentro da narrativa. O diretor leva seus filhos para visitar um memorial de um dos maiores campos de concentração construídos por não-nazistas da Europa. Com o argumento de que as crianças sentem uma culpa ancestral por conta de antepassados preconceituosos que prejudicaram grupos minorizados, ele afirma que elas ficam desconfortáveis enquanto reforça que, para algumas pessoas do país, aquele ambiente é um motivo de orgulho, não de vergonha. Em seguida, ele leva os filhos para se divertirem em um parque, onde eles se distraem com um brinquedo marcado com símbolos nazistas.

Essas situações me remetem a uma culpa da elite branca de esquerda que parece querer provar o tempo inteiro o quanto é progressista apesar de seus privilégios oriundos de um passado familiar problemático.

O Vento Sopra Através dos Túmulos ganha muitos pontos mais pela experimentação do formato do que pela ideia em si. O discurso é muito direcionado para um público que já concorda com o ponto de vista do diretor. Nenhum problema nisso, claro, mas em alguns pontos fica parecendo muito mais por uma busca pelo choque que informações mais específicas sobre a temática podem trazer para esse espectador.

NOTA: 3,5/5

É Apenas Um Adeus (2024)

48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Exibido na seção ACID do Festival de Cannes

É um tema universal a ideia de que o mundo escolar parece contemplar toda a nossa noção de mundo enquanto vivemos aquele momento. Não sabemos o que vai acontecer depois, mas ao mesmo tempo nos são prometidas todas as possibilidades na entrada da fase adulta, por mais que também ainda sejamos muito novos para decidir, por exemplo, o que queremos fazer da vida.

No documentário É Apenas Um Adeus (So Long), o diretor francês Guillaume Brac explora um grupo de amigos em seus últimos dias de colegial. Os pontos citados são abordados de forma precisa, mas ao mesmo tempo um cenário muito específico é apresentado: todos os personagens mostrados são brancos e a escola é uma espécie de internato, onde os alunos também convivem nos quartos compartilhados e fazem juntos atividades para além da escola.

O filme consegue destacar de forma precisa algumas dualidades desse momento da vida deles ao mostrar discussões sociais, estudos e debates em comparação a brincadeiras de teor infantil, com os alunos correndo para se atirar em cima de colchões que deslizam pelos corredores dos dormitórios.

A direção de Guillaume mostra várias interações longas para evidenciar a proximidade daqueles alunos e aumentar o entendimento de que o afastamento realmente será difícil para todos eles, mas algumas trocas de afeto estão com a câmera tão próxima que parecem montadas de um jeito forçado para render esses belos momentos.

Apesar de retratar com delicadeza os sentimentos tão presentes na história daquelas pessoas, alguns pontos não passam despercebidos para espectadores mais atentos a questões sociais: não há um recorte de sexualidade e gênero no sentido de pessoas LGBT+, que vivem o momento de colégio de uma forma bem específica e podada de muitas situações consideradas comuns, como o “primeiro amor”; e em determinada cena, colegas tiram sarro de um aluno (branco) enquanto desfazem seus dreadlocks, perguntam se há animais escondidos ali, que parece velcro e que está sujo.

A sinopse do documentário traz uma pergunta que parece boba em sua abertura: amizades do colégio podem durar uma vida inteira? Para o espectador (e para mim foi assim quando li a sinopse pela primeira vez) pode soar como um dilema vazio de quem ainda não enfrentou muita coisa na vida, mas uma escolha de abordagem muda tudo. O forte da produção está nas personagens femininas, que são as únicas que dão seus depoimentos. E é muito impactante observar que, para além da dificuldade comum do momento que vivem, todas elas também possuem uma camada extra para a situação, tendo dificuldade de se relacionar com suas famílias e realmente mergulhando na dúvida que está presente na própria sinopse do documentário.

É Apenas Um Adeus está na programação oficial da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

NOTA: 3/5