Sol de Inverno (2024)

48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Exibido nos festivais de Cannes, Toronto e San Sebastián

Sol de Inverno (Boku No Ohisama) chegou ao Brasil na Mostra de São Paulo com uma curiosidade extra para cinéfilos. O filme japonês dirigido e escrito com sensibilidade por Hiroshi Okuyama, que também assina a belíssima fotografia da produção, é o primeiro longa distribuído pela Michiko, distribuidora criada por Michel Simões e Chico Fireman, membros do saudoso podcast Cinema na Varanda, que muito aumentou meu conhecimento sobre diretores internacionais. O longa tem previsão de estreia para janeiro no Brasil.

O filme se passa em uma pequena ilha japonesa, onde a vida gira em torno das mudanças das estações. O inverno é época de hóquei no gelo na escola, mas Takuya não demonstra muita animação com isso. O verdadeiro interesse do garoto está em Sakura, uma estrela em ascensão da patinação artística de Tóquio, por quem ele desenvolve um fascínio genuíno. Arakawa, treinador e ex-campeão da modalidade, vê potencial em Takuya e decide orientá-lo para formar uma dupla com Sakura para uma competição que acontecerá em breve. Enquanto o inverno se prolonga, os sentimentos se aprofundam, e os dois jovens criam um vínculo harmonioso. Mas até mesmo a primeira neve acaba derretendo.

O paralelo entre o hóquei e a patinação traz um dos temas centrais: o que é esperado de meninos e meninas. A representação da masculinidade é um dos fatores centrais do longa, tanto na figura de Takuya, que transita do hóquei para a patinação, quanto na de Arakawa, que vive com seu namorado e não tem maiores questões em relação a sua sexualidade.

Enquanto esses personagens se aproximam, o espectador é apresentado, em várias cenas, aos personagens observando outras situações. Apesar dos acontecimentos serem centrais, o foco é nos olhares desses protagonistas para o que está ocorrendo, destacando a sensibilidade e reações de cada um de maneira muito íntima, já que na maior parte dessas “observações” eles se encontram sozinhos.

O rinque, quando utilizado para a patinação artística, é apresentado como um lugar mágico. A luz do dia do lado de fora é mostrada de forma estourada nas janelas. Não é possível ver o exterior desse lugar, porque enquanto os personagens patinam, nada do que está fora dali realmente importa.

Os momentos de dança, aliás, são filmados com delicadeza e acompanham os movimentos dos artistas sem cortes. Eles saltam e deslizam em velocidade alta de forma muito natural. E momentos como esses são embalados de forma muito emocionante pela tocante canção Clair De Lune, de Claude Debussy. Vale também destacar o cuidado com que a relação entre professor e alunos é mostrada, pois esse ponto poderia facilmente ser abordado de forma problemática.

Quando esses personagens se aproximam e praticam juntos, as cenas de observação alheia terminam e o espectador se torna o observador. Agora os protagonistas estão juntos. E apesar da trama se desenvolver lentamente até essa união principal, os momentos finais dão lugar a conflitos e resoluções de maneira apressada.

Como se tivessem vivido um “amor de inverno”, a estação vai mudando, a neve vai embora e as cores do filme se tornam mais quentes. Os três protagonistas, então, tomam atitudes e se transformam junto com o clima em um desfecho quase agridoce, mas que não deixa de espantar por conta da forma repentina que acontece. As mudanças são justificadas, mas parecem pouco trabalhadas em um roteiro que era tão profundo em relação aos sentimentos de seus protagonistas na maior parte do tempo.

Takuya, Sakura e Arakawa não são mais os mesmos e, apesar dessa mudança tão rápida quanto o derretimento da neve no fim do longe, Sol de Inverno tem sua força concretizada na sensibilidade com que aprofunda a relação dos três e a paixão que eles compartilham pela patinação artística e o momento muito único que viveram juntos.

NOTA: 3,5/5

ENTREVISTA: Conduzindo Seus Pássaros (2024)

Estreia mundial na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Uma das muitas graças dos festivais de cinema é o contato que você pode ter com filmes que dificilmente passariam pelo seu radar ou chegariam até você se não fosse justamente por conta do festival. E esse, felizmente, é o caso de Conduzindo Seus Pássaros (Tori wo michibiku / Leading Your Birds). E ainda tive a ótima oportunidade de conversar com Takeru Ozaki, diretor e roteirista do longa, antes da sessão. Confira a entrevista após a sinopse e, logo depois, meu texto sobre o filme.

Morando em Tóquio, o músico Seita passa por um bloqueio criativo e viaja para uma casa nas montanhas onde passou parte da infância em família. Em contato com a natureza, focado em seu trabalho e captando sons de diferentes origens, ele é surpreendido quando sua irmã, Azumi, uma jovem surda, aparece para também passar alguns dias na casa.

Desde o início, ainda em Tóquio, o design de som se mostra fundamental. O barulho da cidade, as conversas… Já há uma promessa da experiência imersiva que o longa proporciona, e aqui ressalto a honra de poder conferir essa produção em uma sala de cinema durante o festival.

Com a ida para a casa nas montanhas, o som das falas se torna ausente. O foco vai especialmente para a natureza, o vento nas árvores e, como prometido no título, o som dos pássaros. Tudo isso ilustrado por uma imensidão de paisagem verde. Com a chegada de Azumi, mais sons entram em cena enquanto os irmãos se comunicam pela linguagem de sinais.

Ela faz muito barulho e todos os sons são captados, ideia que se relaciona com o trabalho do próprio protagonista e de como ele lida com o que ouve ao seu redor. Sua irmã assopra a comida quente, suga o macarrão com a boca, ronca, arrasta folhas de papel em uma mesa. Tudo está presente e muito alto. O que a princípio irrita Seita, logo o ajuda a desbloquear sua mente e sua relação com a própria irmã.

Mais adiante, mesmo com a chegada de um novo personagem que traz de volta o som das vozes para o filme, o cuidado com o silêncio prevalece. O silêncio, aliás, se torna tão bem explorado quanto os sons e destaca ainda mais o ótimo trabalho de Takeru.

O fim remete ao começo, estabelecendo o ciclo criativo de Seita por completo e fazendo refletir até sobre os processos de artistas lidando com sua produtividade no trabalho. E é muito bonito ver como um filme do outro lado do mundo consegue comunicar tanta coisa ao derrubar a barreira da linguagem falada. Apesar de termos usado a fala, não tive como não associar os temas do longa com o próprio fato de ter entrevistado o diretor e roteirista. Duas pessoas falando línguas completamente diferentes se encontrando no inglês para falar de cinema. Ótima experiência.