48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo Vencedor do prêmio de melhor filme da Semana da Crítica do Festival de Veneza
Já começando no clichê, uma das maiores magias do cinema é a possibilidade de te transportar para mundos diferentes onde você pode refletir sobre o seu próprio. Os festivais de cinema facilitam essa conexão entre mundos, e foi divertido descobrir que Não Chore, Borboleta (Don’t Cry, Butterfly / Mưa trên cánh bướm), um filme do Vietnã, vencedor do prêmio de melhor filme da Semana da Crítica do Festival de Veneza, se tornou minha primeira grande surpresa na Mostra de São Paulo deste ano.
Após a crise de seu casamento se agravar, uma organizadora de casamentos busca simpatias e rituais para manter seu marido por perto. Enquanto isso, sua filha reflete sobre possibilidades da vida fora do país e uma infiltração sobrenatural no teto de sua casa só pode ser vista por mulheres.
A mistura da premissa fantástica com a ideia de simpatias e uma terceira questão tão humana deixa fácil fácil com que se mergulhe no longa de Linh Duong, especialmente sendo de um país cuja cultura social parece ser tão próxima da brasileira. Diversas cenas externas rápidas do longa poderiam se passar tranquilamente no Brasil. É um conforto exclusivo para a gente, mas ajuda bastante a se envolver na história.
O dia-a-dia da protagonista, com pouquíssimas falas, é apresentado de maneira inteligente. Seu emprego no mundo dos casamentos, lidando com casais apaixonados, entra em contraste com o seu casamento abalado. Ela não consegue tirar o assunto da cabeça, o que se torna mais um fator que a impulsiona para buscar ajudas por meios espirituais.
A todo momento, o roteiro “se costura para dentro”. A personagem da filha sonha com a vida fora do país. Sua claustrofobia é destacada especialmente pelo fato de seu namorado morar na casa vizinha. Os dois chegam a se cruzar nas escadas do condomínio em que moram. Outro momento importante envolvendo a mesma personagem se dá quando ela conta para a mãe seus planos para sair de casa. A discussão entre as duas é tão central e o relacionamento delas se torna tão o que o filme é no fim das contas, que o público demora a descobrir que o pai também está presente no momento.
Com a infiltração no teto de casa saindo do controle, a parte final do longa se perde um pouco no ritmo, mas segura seus pontos positivos ao abraçar a fantasia mais profundamente. Conectando todas as histórias a esse mal que está tomando conta da casa, é um momento extremamente difícil envolvendo muita água e extremamente bem filmado. É tão bonito que reforça as criativas escolhas estéticas feitas pela direção desde o início do filme.
Abraçando o simbolismo, Não Chore, Borboleta reflete num universo fantástico como mulheres têm decisões e as vidas afetadas por questões conectadas a relações com homens para manter a estrutura do lar.
48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo Exibido na seção ACID do Festival de Cannes
É um tema universal a ideia de que o mundo escolar parece contemplar toda a nossa noção de mundo enquanto vivemos aquele momento. Não sabemos o que vai acontecer depois, mas ao mesmo tempo nos são prometidas todas as possibilidades na entrada da fase adulta, por mais que também ainda sejamos muito novos para decidir, por exemplo, o que queremos fazer da vida.
No documentário É Apenas Um Adeus (So Long), o diretor francês Guillaume Brac explora um grupo de amigos em seus últimos dias de colegial. Os pontos citados são abordados de forma precisa, mas ao mesmo tempo um cenário muito específico é apresentado: todos os personagens mostrados são brancos e a escola é uma espécie de internato, onde os alunos também convivem nos quartos compartilhados e fazem juntos atividades para além da escola.
O filme consegue destacar de forma precisa algumas dualidades desse momento da vida deles ao mostrar discussões sociais, estudos e debates em comparação a brincadeiras de teor infantil, com os alunos correndo para se atirar em cima de colchões que deslizam pelos corredores dos dormitórios.
A direção de Guillaume mostra várias interações longas para evidenciar a proximidade daqueles alunos e aumentar o entendimento de que o afastamento realmente será difícil para todos eles, mas algumas trocas de afeto estão com a câmera tão próxima que parecem montadas de um jeito forçado para render esses belos momentos.
Apesar de retratar com delicadeza os sentimentos tão presentes na história daquelas pessoas, alguns pontos não passam despercebidos para espectadores mais atentos a questões sociais: não há um recorte de sexualidade e gênero no sentido de pessoas LGBT+, que vivem o momento de colégio de uma forma bem específica e podada de muitas situações consideradas comuns, como o “primeiro amor”; e em determinada cena, colegas tiram sarro de um aluno (branco) enquanto desfazem seus dreadlocks, perguntam se há animais escondidos ali, que parece velcro e que está sujo.
A sinopse do documentário traz uma pergunta que parece boba em sua abertura: amizades do colégio podem durar uma vida inteira? Para o espectador (e para mim foi assim quando li a sinopse pela primeira vez) pode soar como um dilema vazio de quem ainda não enfrentou muita coisa na vida, mas uma escolha de abordagem muda tudo. O forte da produção está nas personagens femininas, que são as únicas que dão seus depoimentos. E é muito impactante observar que, para além da dificuldade comum do momento que vivem, todas elas também possuem uma camada extra para a situação, tendo dificuldade de se relacionar com suas famílias e realmente mergulhando na dúvida que está presente na própria sinopse do documentário.
É Apenas Um Adeus está na programação oficial da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo Vencedor do grande prêmio do júri no Festival de Sundance
A pobreza romantizada é uma representação comum no cinema, infelizmente. No caso de Sujo (2014), dirigido por Astrid Rondero e Fernanda Valadez, explora os personagens no escuro, sempre em ambientes vazios. A natureza ao redor deles é devastada e árvores de galhos secos os cercam por todos os lados e estão presentes em cena a todo tempo. Mesmo na tomada que mostra um belo céu estrelado, esses galhos funcionam como uma moldura na tela.
O longa mexicano acompanha a história de Sujo da infância até a adolescência. Aos 4 anos de idade, ele perde o pai, membro de um cartel que é assassinado. A partir daí, o protagonista passa a ser protegido por suas tias até o fim da adolescência, quando parte para a cidade grande, fugindo do passado “perigoso” e em busca de um emprego e oportunidade de estudar.
A história fica dividida em três partes. Nas duas primeiras, em que Sujo ainda está em Terra Caliente, no estado de Michoacán, o destaque fica para a importância dada para as personagens femininas, todas interpretadas por ótimas atrizes. O rosto dos homens nunca é inteiramente mostrado, nem mesmo o do pai da criança. As mulheres tomam conta da história enquanto protegem os pequenos do mundo do crime e suas ações são sempre destacadas, mesmo quando, em cena, o que temos no centro é o que as crianças estão fazendo no momento.
A direção dessas duas primeiras partes é cuidadosa, a fotografia é usada em favor da narrativa, deixando os personagens no escuro no dia-a-dia e em devaneios durante a noite. É bonito de se ver, mas todas essas decisões, entretanto, são feitas de modo a ressaltar a miséria e a solidão dessas pessoas em um mundo do qual não se parece poder fugir. Sujo, já adolescente, conserta o carro do pai, mesmo carro em que na infância ficou preso por horas. E a partir daí, parece aceitar um destino ingrato, começando a se envolver com o cartel com amigos da mesma idade. Nada é sutil.
Na terceira parte, essa direção assume um tom mais tradicional, abandonando os elementos marcantes das duas primeiras. Um tom professoral entra em cena, idealizando ainda mais a realidade difícil de onde vêm pessoas marginalizadas. A dificuldade de abandonar o passado continua sendo tema central. A visita de um amigo do passado abala a nova vida de Sujo e uma professora, na qual o protagonista reflete a falta de uma presença maternal, mesmo sofrendo nas mãos do jovem, que não sabe o que faz, continua o ajudando e apostando nele.
A cobrança de masculinidade quando mais velho é um caminho pouco explorado, apenas com outros homens que o provocam quando ele passa, mais de uma vez, ao lado de um grupo que treina luta em uma arena na rua. Talvez esse novo recorte acrescentasse uma camada a mais num filme de representações tão problemáticas. Em uma das cenas que mais marcam essa romantização da pobreza de forma velada na cidade grande, a professora fala sobre Sujo para outra pessoa: “Ele não sabe, mas é bem especial”. Visto por americanos progressistas banhados por essa fetichização da miséria, é possível entender o que levou Sujo a levar o grande prêmio do júri no Festival de Sundance.
Sujoestá na programação oficial da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo Vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes
Ao som de Greatest Day, do Take That, o aguardado novo filme de Sean Baker (Tangerine (2015), Projeto Flórida (2017)) abre e encerra o conto de fadas que é contado do início ao fim em sua primeira meia hora. Ani, interpretada pela excelente Mikey Madison, trabalha como dançarina em uma luxuosa boate de Nova York e oferece serviços extras para alguns de seus clientes. É numa dessas que ela se envolve com Ivan (Mark Eidelstein), filho de um oligarca russo, com vinte e poucos anos e que não tem camada alguma a não ser a de curtir a vida intensamente. Ele está sempre feliz, e isso é o próprio quem diz. Os dois se casam em Las Vegas impulsivamente e se beijam na sacada da luxuosa mansão em que o jovem mora. E é aí que o conto de fadas acaba. Ao descobrirem com quem Ivan está casado, os pais do rapaz embarcam para os Estados Unidos e, enquanto não chegam, seus funcionários brutos precisam conter o casal e anular o casamento.
Sem perder tempo para apresentar seus personagens, apesar da longuíssima introdução para a história, Anora se segura especialmente no humor e na ação para manter o bom ritmo em seus 139 minutos de duração. O filme é destaque na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e levou a Palma de Ouro em Cannes deste ano. E apesar de começar, e até ser vendido de certa forma, com ares de comédia romântica, a maior parte do filme é focada na relação de Ani com os funcionários dos pais de Ivan, que fugiu pelas ruas de Nova York em um ato de desespero.
A relação de Anora com Ivan não é exatamente clara para além da superficialidade que eles tiram dela. Sabemos que a protagonista almeja mudar de vida e também ter alguma vantagem com o casamento, mas sua insistência na procura por Ivan e na defesa de seu marido (e ela insistentemente pontua esse status do relacionamento) abre margem para um possível sentimento real que há ali, mas nada disso é comprovado, já que a conexão entre os dois é mostrada apenas pelo senso de humor que parecem ter em comum.
A citada longa sequência inicial, cheia de cortes, festas, sexo, viagens e diversão, dá lugar a uma longa cena em que Ani, depois de ser abandonada por Ivan, tenta se livrar dos capangas da família russa na sala da grandiosa mansão. A cena desperta risadas da plateia, mas, ao mesmo tempo em que de fato é engraçada, também gira muito a situação cômica em torno da violência que a personagem feminina está sofrendo nas mãos de três homens que tentam mantê-la presa a qualquer custo. É desconfortável. Para o espanto dos homens grandalhões que tentam controlá-la, ela reluta bastante e demora a ser convencida a também participar na busca pelo jovem rapaz.
A partir desse ponto, a protagonista se apaga. Há toda uma promessa de garra e ambição nos primeiros minutos que se perde nas ruas da cidade. O foco da história muda para a dinâmica da perseguição e a personagem não age muito além do que é esperado. O ponto mais interessante nesse momento é o que Sean Baker faz muito bem em seus filmes anteriores: mostrar as cidades de forma mais crua e suja. Obviamente há romantização dos lugares que vemos, mas pouco do deslumbre que costumamos observar em representações da Califórnia, Orlando e, nesse caso, Nova York é retratado em suas produções. Ainda pensando nas locações, o uso dos cenários e enquadramentos marcantes é essencial para o trabalho emotivo dos momentos em que a personagem, já mais perto do fim do longa, passa novamente por lugares importantes da história, como a mansão, a boate em que dançava e até mesmo as ruas pelas quais andava ao voltar para casa de manhã cedo, após uma noite trabalhando.
Anora, aliás, me remete muito a Tangerine, especialmente pelo caos nos diálogos, nas ruas e nas discussões cheias de xingamento, com uma pessoa falando por cima da outra. Há inclusive uma divertida e nojenta cena de vômito dentro de um carro que remete completamente ao filme de 2015 em uma espécie de autorreferência do diretor.
Apesar dessa exploração da cidade, o mundo ao redor não importa muito, e muitos elementos em volta do que é central em cena ficam desfocados. Os personagens também parecem deslocados nessa busca. Tanto Ani por estar em uma situação que nunca imaginou passar, quanto os capangas russos por estarem se aventurando nas ruas de Nova York. Essa diferença cultural, aliás, é ressaltada em diversas camadas. Os russos, que passam por dificuldades para questões burocráticas, como a anulação do casamento, não cedem ao tom de superioridade dos americanos, que parecem nunca entender a gravidade do que está acontecendo realmente, achando graça quando Ani aparece desesperada procurando por seu marido fugitivo. E também vale destacar o uso da língua russa por boa parte do longa. Obviamente os personagens falam bem mais inglês do que faria sentido em determinadas situações, mas o uso frequente de uma outra língua num filme de um país conhecido pelo público que não gosta de legendas é, no mínimo, interessante.
Mikey Madison é certamente um dos pontos altos do filme. A atriz, que fez uma boa participação em Pânico 5 (2022) e é uma das protagonistas de Better Things (2016), uma das minhas séries favoritas da vida, se joga na pele de Ani e é hipnotizante. Em entrevistas, a atriz fala bastante sobre a experiência de se preparar para o papel. A parte relacionada ao trabalho sexual não parece gratuita durante o filme, o problema fica especialmente na reta final. Além da já citada graça excessiva nas cenas de violência contra a personagem, quando ela volta a tomar as rédeas da história em seus minutos finais, alguns fatores soam problemáticos e o roteiro se percebe claramente escrito por um homem. Em um dos últimos diálogos, há uma delicada conversa sobre estupro que também arrancou risadas da plateia em uma abordagem fora do tom da situação. Não duvido de que uma mulher poderia estar respondendo daquela forma naquela situação, mas o momento poderia ser melhor trabalhado para evitar a interpretação dúbia.
No mesmo diálogo, Ani escuta de outro personagem a frase “eu gosto de Anora mais do que eu gosto de Ani”. E é uma pena que esse vislumbre de quem seria a pessoa por trás da persona Ani se perca na subjetividade dos personagens de um filme em que a protagonista é deixada de lado e mal explorada em boa parte do tempo.