O Vento Sopra Através dos Túmulos (2024)

48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Exibido no Festival de Berlim

Na tentativa de fuga de um documentário denso sobre ascensão fascista nos dias atuais, o diretor Travis Wilkerson acerta ao mesclar duros fatos sobre o neonazismo na Croácia com o carismático personagem do detetive Ivan Peric, que com muitas dificuldades investiga o assassinato de turistas na cidade de Split. Esse trabalho se torna complicado uma vez que os visitantes não são exatamente bem vistos no país.

O formato híbrido e a alternância de tons de O Vento Sopra Através dos Túmulos (Through the Graves the Wind Is Blowing) fazem com que humor trazido pela figura caricata do detetive amenize as histórias pesadas que o documentarista traz enquanto nos mostra, sempre em preto e branco, grandiosas estruturas abandonadas pela cidade, passando por shoppings e construções olímpicas, todas pichadas com símbolos nazistas.

Nessas paisagens, Wilkerson fala sobre a queda da Iugoslávia e reflete sobre a perseguição a antifascistas enquanto exibe imagens de uma árvore torta no meio desses monumentos largados. Essa escolha de imagens é muito bem executada e, embora se torne repetitiva e até cansativa, embasa bem o peso dos relatos que o diretor traz em seu texto.

Quebrando essa repetição em um dos momentos mais marcantes do filme, Travis, que morou por anos com a família na Croácia e produziu o documentário perto do fim desse período, fala sobre a dificuldade de representar visualmente algumas passagens históricas. Ele escolhe usar o som do mar em movimento misturado ao barulho de tiros enquanto figuras vermelhas se sobrepõem na tela. O efeito é hipnotizante e de forma inusitada remete aos também mesmerizantes vídeos de TikTok em que uma pessoa narra uma história enquanto as imagens mostradas não necessariamente tem a ver com o que está sendo contado.

Em outro momento que chama atenção, Wilkerson propõe um experimento ao questionar se o público já se perguntou quantos de seus vizinhos são nazistas. Ele provoca ao refletir se já não seria muita coisa se a resposta para a pergunta fosse “apenas um”. O diretor então sai pelas ruas e fotografa os símbolos nazistas que estão em paredes e postes, encontrando mais de 200 marcas em cerca de meia hora de caminhada.

Na busca de mais impacto, entretanto, algumas dessas cenas acabam soando muito “montadas”, por mais que estejam bem colocadas dentro da narrativa. O diretor leva seus filhos para visitar um memorial de um dos maiores campos de concentração construídos por não-nazistas da Europa. Com o argumento de que as crianças sentem uma culpa ancestral por conta de antepassados preconceituosos que prejudicaram grupos minorizados, ele afirma que elas ficam desconfortáveis enquanto reforça que, para algumas pessoas do país, aquele ambiente é um motivo de orgulho, não de vergonha. Em seguida, ele leva os filhos para se divertirem em um parque, onde eles se distraem com um brinquedo marcado com símbolos nazistas.

Essas situações me remetem a uma culpa da elite branca de esquerda que parece querer provar o tempo inteiro o quanto é progressista apesar de seus privilégios oriundos de um passado familiar problemático.

O Vento Sopra Através dos Túmulos ganha muitos pontos mais pela experimentação do formato do que pela ideia em si. O discurso é muito direcionado para um público que já concorda com o ponto de vista do diretor. Nenhum problema nisso, claro, mas em alguns pontos fica parecendo muito mais por uma busca pelo choque que informações mais específicas sobre a temática podem trazer para esse espectador.

NOTA: 3,5/5

Não Chore, Borboleta (2024)

48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Vencedor do prêmio de melhor filme da Semana da Crítica do Festival de Veneza

Já começando no clichê, uma das maiores magias do cinema é a possibilidade de te transportar para mundos diferentes onde você pode refletir sobre o seu próprio. Os festivais de cinema facilitam essa conexão entre mundos, e foi divertido descobrir que Não Chore, Borboleta (Don’t Cry, Butterfly / Mưa trên cánh bướm), um filme do Vietnã, vencedor do prêmio de melhor filme da Semana da Crítica do Festival de Veneza, se tornou minha primeira grande surpresa na Mostra de São Paulo deste ano.

Após a crise de seu casamento se agravar, uma organizadora de casamentos busca simpatias e rituais para manter seu marido por perto. Enquanto isso, sua filha reflete sobre possibilidades da vida fora do país e uma infiltração sobrenatural no teto de sua casa só pode ser vista por mulheres.

A mistura da premissa fantástica com a ideia de simpatias e uma terceira questão tão humana deixa fácil fácil com que se mergulhe no longa de Linh Duong, especialmente sendo de um país cuja cultura social parece ser tão próxima da brasileira. Diversas cenas externas rápidas do longa poderiam se passar tranquilamente no Brasil. É um conforto exclusivo para a gente, mas ajuda bastante a se envolver na história.

O dia-a-dia da protagonista, com pouquíssimas falas, é apresentado de maneira inteligente. Seu emprego no mundo dos casamentos, lidando com casais apaixonados, entra em contraste com o seu casamento abalado. Ela não consegue tirar o assunto da cabeça, o que se torna mais um fator que a impulsiona para buscar ajudas por meios espirituais.

A todo momento, o roteiro “se costura para dentro”. A personagem da filha sonha com a vida fora do país. Sua claustrofobia é destacada especialmente pelo fato de seu namorado morar na casa vizinha. Os dois chegam a se cruzar nas escadas do condomínio em que moram. Outro momento importante envolvendo a mesma personagem se dá quando ela conta para a mãe seus planos para sair de casa. A discussão entre as duas é tão central e o relacionamento delas se torna tão o que o filme é no fim das contas, que o público demora a descobrir que o pai também está presente no momento.

Com a infiltração no teto de casa saindo do controle, a parte final do longa se perde um pouco no ritmo, mas segura seus pontos positivos ao abraçar a fantasia mais profundamente. Conectando todas as histórias a esse mal que está tomando conta da casa, é um momento extremamente difícil envolvendo muita água e extremamente bem filmado. É tão bonito que reforça as criativas escolhas estéticas feitas pela direção desde o início do filme.

Abraçando o simbolismo, Não Chore, Borboleta reflete num universo fantástico como mulheres têm decisões e as vidas afetadas por questões conectadas a relações com homens para manter a estrutura do lar.

NOTA: 4/5

A Garota da Vez (2024)

No último mês, três filmes com olhares muito específicos sobre suas protagonistas femininas trouxeram cenas parecidas e que há muito tempo vemos no cinema: homens pedindo para mulheres sorrirem mais. A Substância (2024), Pisque Duas Vezes (2024) e, agora, A Garota da Vez (Woman of the Hour) me fazem pensar na frase que até virou um quadro nas redes sociais da excelente Natalia Malini, do Boca do Inferno: o terror na verdade é ser mulher.

Estreia na direção da ótima atriz e super carismática Anna Kendrick, A Garota da Vez parte de uma história real para comentar a violência enfrentada por mulheres e a aliança que elas podem formar a partir de e para se defender disso. Em 1970, Cheryl Bradshaw (interpretada por Kendrick), em busca de uma oportunidade como atriz, participa de um programa de auditório focado em relacionamentos onde quase tudo é fake. Ela precisa escolher entre três pretendentes no palco, sem saber que um deles é o serial killer Rodney Alcala, fotógrafo condenado pela morte de seis mulheres, mas que acredita-se que pode ter sido responsável pelo assassinato de mais de 130 vítimas.

A cena inicial, apesar da tensão e da boa apresentação da abordagem do assassino, não convence tanto. Certo estranhamento é causado pelo tom de comédia romântica que se estabelece no filme logo em seu começo. Muitas perucas e costeletas também gritam na tela, mas não desviam a atenção de alguns pontos centrais e bem marcados do roteiro, como as violências rotineiras sofridas por mulheres mostradas de forma sutil, de comentários feitos por outras pessoas até a forma como homens criam suposições sobre seus comportamentos.

A primeira metade do longa é bastante bagunçada, especialmente em termos de montagem, pela escolha de mostrar os crimes cometidos pelo serial killer em tempos intercalados, confundindo o formato de troca de cenas e deixando o arco principal fraco e relativamente curto. O protagonismo da personagem de Anna Kendrick parece ser tirado de cena por boa parte do filme.

Como atriz, entretanto, Kendrick se destaca e brilha em tela sempre que aparece. Ela sabe o que faz melhor e mergulha nisso. A cena em que Cheryl resolve sair do roteiro do programa e inventar as próprias perguntas para os pretendentes é um ponto alto do filme, com humor e tensão intercalados de uma maneira muito habilidosa e difícil de se fazer. Ela ri e faz piadas enquanto o público sabe que o candidato que está se saindo melhor na competição é o assassino.

Para uma primeira direção, a aposta não é alta. Não há muita ousadia ou decisões elaboradas, mas a decisão supera o comodismo e entrega um resultado bastante seguro e honesto, sem atrapalhar o espectador por cenas mal planejadas. Mas há um momento em que a Anna por trás das câmeras brilha: a cena do estacionamento. A tensão bem construída na escuridão do ambiente e o jogo de “quem engana quem” feito pelos dois personagens em cena me causaram um desconforto que há tempos não sentia enquanto assistia a um filme. O momento acontece já no terceiro ato, quando as dinâmicas do estúdio de TV já foram deixadas para trás.

As cenas de violência também mostram o cuidado da diretora para criar tais momentos, que são violentos sem ser ofensivos, um caminho que facilmente poderia ser tomado por um diretor homem com menos tato para retratar esse tipo de situação.

É no ótimo terceiro ato, inclusive, que o filme ganha mais força e mostra a que veio. A aliança plantada entre mulheres no começo do filme, em que funcionárias dos bastidores do programa dão dicas e se interessam genuinamente por Cheryl, é mostrada como nem sempre suficiente para que elas se salvem de situações de violência. O fim da história da protagonista, intercalado com desfecho de uma sobrevivente de Alcala, aponta como a vida de mulheres pode ser interrompida de diversas formas, independente do nível de violência que elas sofram por conta ou nas mãos de homens. O terror na verdade é ser mulher.

NOTA: 3,5/5

É Apenas Um Adeus (2024)

48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Exibido na seção ACID do Festival de Cannes

É um tema universal a ideia de que o mundo escolar parece contemplar toda a nossa noção de mundo enquanto vivemos aquele momento. Não sabemos o que vai acontecer depois, mas ao mesmo tempo nos são prometidas todas as possibilidades na entrada da fase adulta, por mais que também ainda sejamos muito novos para decidir, por exemplo, o que queremos fazer da vida.

No documentário É Apenas Um Adeus (So Long), o diretor francês Guillaume Brac explora um grupo de amigos em seus últimos dias de colegial. Os pontos citados são abordados de forma precisa, mas ao mesmo tempo um cenário muito específico é apresentado: todos os personagens mostrados são brancos e a escola é uma espécie de internato, onde os alunos também convivem nos quartos compartilhados e fazem juntos atividades para além da escola.

O filme consegue destacar de forma precisa algumas dualidades desse momento da vida deles ao mostrar discussões sociais, estudos e debates em comparação a brincadeiras de teor infantil, com os alunos correndo para se atirar em cima de colchões que deslizam pelos corredores dos dormitórios.

A direção de Guillaume mostra várias interações longas para evidenciar a proximidade daqueles alunos e aumentar o entendimento de que o afastamento realmente será difícil para todos eles, mas algumas trocas de afeto estão com a câmera tão próxima que parecem montadas de um jeito forçado para render esses belos momentos.

Apesar de retratar com delicadeza os sentimentos tão presentes na história daquelas pessoas, alguns pontos não passam despercebidos para espectadores mais atentos a questões sociais: não há um recorte de sexualidade e gênero no sentido de pessoas LGBT+, que vivem o momento de colégio de uma forma bem específica e podada de muitas situações consideradas comuns, como o “primeiro amor”; e em determinada cena, colegas tiram sarro de um aluno (branco) enquanto desfazem seus dreadlocks, perguntam se há animais escondidos ali, que parece velcro e que está sujo.

A sinopse do documentário traz uma pergunta que parece boba em sua abertura: amizades do colégio podem durar uma vida inteira? Para o espectador (e para mim foi assim quando li a sinopse pela primeira vez) pode soar como um dilema vazio de quem ainda não enfrentou muita coisa na vida, mas uma escolha de abordagem muda tudo. O forte da produção está nas personagens femininas, que são as únicas que dão seus depoimentos. E é muito impactante observar que, para além da dificuldade comum do momento que vivem, todas elas também possuem uma camada extra para a situação, tendo dificuldade de se relacionar com suas famílias e realmente mergulhando na dúvida que está presente na própria sinopse do documentário.

É Apenas Um Adeus está na programação oficial da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

NOTA: 3/5

Sujo (2024)

48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Vencedor do grande prêmio do júri no Festival de Sundance

A pobreza romantizada é uma representação comum no cinema, infelizmente. No caso de Sujo (2014), dirigido por Astrid Rondero e Fernanda Valadez, explora os personagens no escuro, sempre em ambientes vazios. A natureza ao redor deles é devastada e árvores de galhos secos os cercam por todos os lados e estão presentes em cena a todo tempo. Mesmo na tomada que mostra um belo céu estrelado, esses galhos funcionam como uma moldura na tela.

O longa mexicano acompanha a história de Sujo da infância até a adolescência. Aos 4 anos de idade, ele perde o pai, membro de um cartel que é assassinado. A partir daí, o protagonista passa a ser protegido por suas tias até o fim da adolescência, quando parte para a cidade grande, fugindo do passado “perigoso” e em busca de um emprego e oportunidade de estudar.

A história fica dividida em três partes. Nas duas primeiras, em que Sujo ainda está em Terra Caliente, no estado de Michoacán, o destaque fica para a importância dada para as personagens femininas, todas interpretadas por ótimas atrizes. O rosto dos homens nunca é inteiramente mostrado, nem mesmo o do pai da criança. As mulheres tomam conta da história enquanto protegem os pequenos do mundo do crime e suas ações são sempre destacadas, mesmo quando, em cena, o que temos no centro é o que as crianças estão fazendo no momento.

A direção dessas duas primeiras partes é cuidadosa, a fotografia é usada em favor da narrativa, deixando os personagens no escuro no dia-a-dia e em devaneios durante a noite. É bonito de se ver, mas todas essas decisões, entretanto, são feitas de modo a ressaltar a miséria e a solidão dessas pessoas em um mundo do qual não se parece poder fugir. Sujo, já adolescente, conserta o carro do pai, mesmo carro em que na infância ficou preso por horas. E a partir daí, parece aceitar um destino ingrato, começando a se envolver com o cartel com amigos da mesma idade. Nada é sutil.

Na terceira parte, essa direção assume um tom mais tradicional, abandonando os elementos marcantes das duas primeiras. Um tom professoral entra em cena, idealizando ainda mais a realidade difícil de onde vêm pessoas marginalizadas. A dificuldade de abandonar o passado continua sendo tema central. A visita de um amigo do passado abala a nova vida de Sujo e uma professora, na qual o protagonista reflete a falta de uma presença maternal, mesmo sofrendo nas mãos do jovem, que não sabe o que faz, continua o ajudando e apostando nele.

A cobrança de masculinidade quando mais velho é um caminho pouco explorado, apenas com outros homens que o provocam quando ele passa, mais de uma vez, ao lado de um grupo que treina luta em uma arena na rua. Talvez esse novo recorte acrescentasse uma camada a mais num filme de representações tão problemáticas. Em uma das cenas que mais marcam essa romantização da pobreza de forma velada na cidade grande, a professora fala sobre Sujo para outra pessoa: “Ele não sabe, mas é bem especial”. Visto por americanos progressistas banhados por essa fetichização da miséria, é possível entender o que levou Sujo a levar o grande prêmio do júri no Festival de Sundance.

Sujo está na programação oficial da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

NOTA: 2,5/5

Anora (2024)

48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes

Ao som de Greatest Day, do Take That, o aguardado novo filme de Sean Baker (Tangerine (2015), Projeto Flórida (2017)) abre e encerra o conto de fadas que é contado do início ao fim em sua primeira meia hora. Ani, interpretada pela excelente Mikey Madison, trabalha como dançarina em uma luxuosa boate de Nova York e oferece serviços extras para alguns de seus clientes. É numa dessas que ela se envolve com Ivan (Mark Eidelstein), filho de um oligarca russo, com vinte e poucos anos e que não tem camada alguma a não ser a de curtir a vida intensamente. Ele está sempre feliz, e isso é o próprio quem diz. Os dois se casam em Las Vegas impulsivamente e se beijam na sacada da luxuosa mansão em que o jovem mora. E é aí que o conto de fadas acaba. Ao descobrirem com quem Ivan está casado, os pais do rapaz embarcam para os Estados Unidos e, enquanto não chegam, seus funcionários brutos precisam conter o casal e anular o casamento.

Sem perder tempo para apresentar seus personagens, apesar da longuíssima introdução para a história, Anora se segura especialmente no humor e na ação para manter o bom ritmo em seus 139 minutos de duração. O filme é destaque na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e levou a Palma de Ouro em Cannes deste ano. E apesar de começar, e até ser vendido de certa forma, com ares de comédia romântica, a maior parte do filme é focada na relação de Ani com os funcionários dos pais de Ivan, que fugiu pelas ruas de Nova York em um ato de desespero.

A relação de Anora com Ivan não é exatamente clara para além da superficialidade que eles tiram dela. Sabemos que a protagonista almeja mudar de vida e também ter alguma vantagem com o casamento, mas sua insistência na procura por Ivan e na defesa de seu marido (e ela insistentemente pontua esse status do relacionamento) abre margem para um possível sentimento real que há ali, mas nada disso é comprovado, já que a conexão entre os dois é mostrada apenas pelo senso de humor que parecem ter em comum.

A citada longa sequência inicial, cheia de cortes, festas, sexo, viagens e diversão, dá lugar a uma longa cena em que Ani, depois de ser abandonada por Ivan, tenta se livrar dos capangas da família russa na sala da grandiosa mansão. A cena desperta risadas da plateia, mas, ao mesmo tempo em que de fato é engraçada, também gira muito a situação cômica em torno da violência que a personagem feminina está sofrendo nas mãos de três homens que tentam mantê-la presa a qualquer custo. É desconfortável. Para o espanto dos homens grandalhões que tentam controlá-la, ela reluta bastante e demora a ser convencida a também participar na busca pelo jovem rapaz.

A partir desse ponto, a protagonista se apaga. Há toda uma promessa de garra e ambição nos primeiros minutos que se perde nas ruas da cidade. O foco da história muda para a dinâmica da perseguição e a personagem não age muito além do que é esperado. O ponto mais interessante nesse momento é o que Sean Baker faz muito bem em seus filmes anteriores: mostrar as cidades de forma mais crua e suja. Obviamente há romantização dos lugares que vemos, mas pouco do deslumbre que costumamos observar em representações da Califórnia, Orlando e, nesse caso, Nova York é retratado em suas produções. Ainda pensando nas locações, o uso dos cenários e enquadramentos marcantes é essencial para o trabalho emotivo dos momentos em que a personagem, já mais perto do fim do longa, passa novamente por lugares importantes da história, como a mansão, a boate em que dançava e até mesmo as ruas pelas quais andava ao voltar para casa de manhã cedo, após uma noite trabalhando.

Anora, aliás, me remete muito a Tangerine, especialmente pelo caos nos diálogos, nas ruas e nas discussões cheias de xingamento, com uma pessoa falando por cima da outra. Há inclusive uma divertida e nojenta cena de vômito dentro de um carro que remete completamente ao filme de 2015 em uma espécie de autorreferência do diretor.

Apesar dessa exploração da cidade, o mundo ao redor não importa muito, e muitos elementos em volta do que é central em cena ficam desfocados. Os personagens também parecem deslocados nessa busca. Tanto Ani por estar em uma situação que nunca imaginou passar, quanto os capangas russos por estarem se aventurando nas ruas de Nova York. Essa diferença cultural, aliás, é ressaltada em diversas camadas. Os russos, que passam por dificuldades para questões burocráticas, como a anulação do casamento, não cedem ao tom de superioridade dos americanos, que parecem nunca entender a gravidade do que está acontecendo realmente, achando graça quando Ani aparece desesperada procurando por seu marido fugitivo. E também vale destacar o uso da língua russa por boa parte do longa. Obviamente os personagens falam bem mais inglês do que faria sentido em determinadas situações, mas o uso frequente de uma outra língua num filme de um país conhecido pelo público que não gosta de legendas é, no mínimo, interessante.

Mikey Madison é certamente um dos pontos altos do filme. A atriz, que fez uma boa participação em Pânico 5 (2022) e é uma das protagonistas de Better Things (2016), uma das minhas séries favoritas da vida, se joga na pele de Ani e é hipnotizante. Em entrevistas, a atriz fala bastante sobre a experiência de se preparar para o papel. A parte relacionada ao trabalho sexual não parece gratuita durante o filme, o problema fica especialmente na reta final. Além da já citada graça excessiva nas cenas de violência contra a personagem, quando ela volta a tomar as rédeas da história em seus minutos finais, alguns fatores soam problemáticos e o roteiro se percebe claramente escrito por um homem. Em um dos últimos diálogos, há uma delicada conversa sobre estupro que também arrancou risadas da plateia em uma abordagem fora do tom da situação. Não duvido de que uma mulher poderia estar respondendo daquela forma naquela situação, mas o momento poderia ser melhor trabalhado para evitar a interpretação dúbia.

No mesmo diálogo, Ani escuta de outro personagem a frase “eu gosto de Anora mais do que eu gosto de Ani”. E é uma pena que esse vislumbre de quem seria a pessoa por trás da persona Ani se perca na subjetividade dos personagens de um filme em que a protagonista é deixada de lado e mal explorada em boa parte do tempo.

NOTA: 3,5/5

Apartamento 7A (2024)

Nos últimos anos, tornou-se cada vez mais comum o retorno de grandes clássicos do cinema com sequências, remakes, reboots e prequels. Acredito que a maioria esmagadora desses filmes apresenta uma qualidade duvidosa, mas não posso negar que boas surpresas se destacaram nessa leva. De qualquer forma, é sempre arriscado fazer esse tipo de projeto. Na última semana, um deles foi além: Apartamento 7A (Apartment 7A) chega como a prequel de O Bebê de Rosemary.

É um grande risco fazer um prequel de um dos melhores e mais lembrados filmes da história. E sinto que, infelizmente, esse filme entra numa leva de sequências que, não fosse por uma conexão ou outra, poderia ter qualquer outro nome, como o recente A Morte do Demônio: A Ascensão (2023).

No longa, Terry Gionoffrio (Julie Garner) é uma jovem dançarina que, em busca de sua ascensão profissional, é ajudada pelo casal Minnie e Roman Castevet (Dianne Wiest e Kevin McNally), enquanto vê sua vida cercada de forças sombrias durante esse caminhar para o sucesso.

Com o teatro musical presente na premissa, é espantoso como a escolha de não explorar bem esse universo foi tomada. A cena inicial parece descuidada e faz pensar numa falta de orçamento que não é real, especialmente comparada a outros momentos que vemos depois. Um destaque positivo fica para o devaneio da personagem durante seu abuso, que também é um momento bem trabalhado no original. Aqui, é o único momento em que o mergulho no teatro musical é mais ousado imageticamente, com uma bonita representação do demônio (juro!) cravejado de pedras brilhantes. Os outros devaneios se tornam repetitivos, exercendo sempre a mesma função na trama: nenhuma. Mentira, mas é sempre só para assustar por assustar.

Algumas cenas de terror parecem estar lá apenas para essa única função e ficam deslocadas até mesmo da mitologia da história, não convencendo no contexto em que estão. O mal (O MAL!) afeta muito outras pessoas que não estão relacionadas com a trama principal, como se não houvesse regras. E meio que não há mesmo. Há também cenas clichês de histórias de terror sobre gravidez, com protuberâncias na barriga, visões demoníacas do bebê (se bem que a da máquina de lavar é bem legal) e reflexos macabros nos espelhos.

Há uma cena de ensaio em que a protagonista perde o controle, que remete a uma circunstância parecida em Pânico 2 (1997), onde o momento é muito melhor dirigido e parece ser uma referência para a diretora Natalie Erika James. Falando nisso, é impossível também não lembrar de Cisne Negro (2010) quando vemos o desespero da protagonista por sua ascensão, e existe uma cena que remete diretamente ao Suspiria (2018), de Guadagnino. A diferença é, novamente, o comodismo, especialmente quando comparada a referências que chamam tanta atenção justamente por serem dirigidas com mãos pesadas. Obviamente também os dedos do estúdio parecem ter mexido fortemente no projeto por conta de suas crenças no que faria mais sentido para o público, atrapalhando a produção que a diretora tinha em mente.

O apartamento, que dá título ao filme, não é apresentado de maneira grandiosa, mas rever as locações, particularmente as externas, do original me pegou de uma maneira muito positiva. Julie Garner e Dianne Wiest também estão bem comprometidas no trabalho: a primeira é carismática e perceptivelmente se entrega ao papel; a segunda é hipnotizante, com uma voz que se encaixa perfeitamente na horrorosa Senhora Castevet. Gosto muito também da atmosfera criada durante a cena de perseguição da injustiçada Senhora Gardenia, que merecia bem mais espaço também.

A Primeira Profecia (2024) iniciou o ano como uma forte prequel e, ao lado do menos chamativo Imaculada (2024), criou esperança de uma boa leva de filmes de terror pró-aborto. Parece que toda essa parte, que renderia um Apartamento 7A mais forte, aliás, explorando as vontades da personagem de se estabelecer como uma mulher no meio de uma cena artística dominada por homens, vai sendo abandonada até parecer que nem fez parte do filme, quando especialmente na primeira meia hora apresenta cenas super fortes para pontuar o tema, como a da audição de Terry para um novo trabalho.

Por fim, o longa se aproxima tanto do original que quase vira um remake, mas infelizmente acredito que também não seria bom se fosse o caso. A conexão é escancaradamente mostrada na recriação de uma cena do original, que é até divertida de assistir, mas chega depois de toda a parte negativa que já foi entregue ao longo dos mais de 100 minutos de filme. O restante das conexões escondidas e piscadelas para o público, espalhadas pelo roteiro, também não encontram força num filme tão bagunçado.

Obs.: Não entendi direito alguns comentários raciais que o filme faz, desde a forma como a protagonista trata super bem um funcionário negro do prédio até a notícia sobre os protestos de Selma, pela garantia do direito ao voto de pessoas negras. É só para mostrar uma visão política do assunto dada a falta de personagens negros mais relevantes? Tem que ver…

Obs.2: Tem um fade to black na virada pro ato final onde eu jurei que entraria um comercial.

O filmes está disponível no Paramount+.

NOTA: 2/5