Anora (2024)

48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes

Ao som de Greatest Day, do Take That, o aguardado novo filme de Sean Baker (Tangerine (2015), Projeto Flórida (2017)) abre e encerra o conto de fadas que é contado do início ao fim em sua primeira meia hora. Ani, interpretada pela excelente Mikey Madison, trabalha como dançarina em uma luxuosa boate de Nova York e oferece serviços extras para alguns de seus clientes. É numa dessas que ela se envolve com Ivan (Mark Eidelstein), filho de um oligarca russo, com vinte e poucos anos e que não tem camada alguma a não ser a de curtir a vida intensamente. Ele está sempre feliz, e isso é o próprio quem diz. Os dois se casam em Las Vegas impulsivamente e se beijam na sacada da luxuosa mansão em que o jovem mora. E é aí que o conto de fadas acaba. Ao descobrirem com quem Ivan está casado, os pais do rapaz embarcam para os Estados Unidos e, enquanto não chegam, seus funcionários brutos precisam conter o casal e anular o casamento.

Sem perder tempo para apresentar seus personagens, apesar da longuíssima introdução para a história, Anora se segura especialmente no humor e na ação para manter o bom ritmo em seus 139 minutos de duração. O filme é destaque na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e levou a Palma de Ouro em Cannes deste ano. E apesar de começar, e até ser vendido de certa forma, com ares de comédia romântica, a maior parte do filme é focada na relação de Ani com os funcionários dos pais de Ivan, que fugiu pelas ruas de Nova York em um ato de desespero.

A relação de Anora com Ivan não é exatamente clara para além da superficialidade que eles tiram dela. Sabemos que a protagonista almeja mudar de vida e também ter alguma vantagem com o casamento, mas sua insistência na procura por Ivan e na defesa de seu marido (e ela insistentemente pontua esse status do relacionamento) abre margem para um possível sentimento real que há ali, mas nada disso é comprovado, já que a conexão entre os dois é mostrada apenas pelo senso de humor que parecem ter em comum.

A citada longa sequência inicial, cheia de cortes, festas, sexo, viagens e diversão, dá lugar a uma longa cena em que Ani, depois de ser abandonada por Ivan, tenta se livrar dos capangas da família russa na sala da grandiosa mansão. A cena desperta risadas da plateia, mas, ao mesmo tempo em que de fato é engraçada, também gira muito a situação cômica em torno da violência que a personagem feminina está sofrendo nas mãos de três homens que tentam mantê-la presa a qualquer custo. É desconfortável. Para o espanto dos homens grandalhões que tentam controlá-la, ela reluta bastante e demora a ser convencida a também participar na busca pelo jovem rapaz.

A partir desse ponto, a protagonista se apaga. Há toda uma promessa de garra e ambição nos primeiros minutos que se perde nas ruas da cidade. O foco da história muda para a dinâmica da perseguição e a personagem não age muito além do que é esperado. O ponto mais interessante nesse momento é o que Sean Baker faz muito bem em seus filmes anteriores: mostrar as cidades de forma mais crua e suja. Obviamente há romantização dos lugares que vemos, mas pouco do deslumbre que costumamos observar em representações da Califórnia, Orlando e, nesse caso, Nova York é retratado em suas produções. Ainda pensando nas locações, o uso dos cenários e enquadramentos marcantes é essencial para o trabalho emotivo dos momentos em que a personagem, já mais perto do fim do longa, passa novamente por lugares importantes da história, como a mansão, a boate em que dançava e até mesmo as ruas pelas quais andava ao voltar para casa de manhã cedo, após uma noite trabalhando.

Anora, aliás, me remete muito a Tangerine, especialmente pelo caos nos diálogos, nas ruas e nas discussões cheias de xingamento, com uma pessoa falando por cima da outra. Há inclusive uma divertida e nojenta cena de vômito dentro de um carro que remete completamente ao filme de 2015 em uma espécie de autorreferência do diretor.

Apesar dessa exploração da cidade, o mundo ao redor não importa muito, e muitos elementos em volta do que é central em cena ficam desfocados. Os personagens também parecem deslocados nessa busca. Tanto Ani por estar em uma situação que nunca imaginou passar, quanto os capangas russos por estarem se aventurando nas ruas de Nova York. Essa diferença cultural, aliás, é ressaltada em diversas camadas. Os russos, que passam por dificuldades para questões burocráticas, como a anulação do casamento, não cedem ao tom de superioridade dos americanos, que parecem nunca entender a gravidade do que está acontecendo realmente, achando graça quando Ani aparece desesperada procurando por seu marido fugitivo. E também vale destacar o uso da língua russa por boa parte do longa. Obviamente os personagens falam bem mais inglês do que faria sentido em determinadas situações, mas o uso frequente de uma outra língua num filme de um país conhecido pelo público que não gosta de legendas é, no mínimo, interessante.

Mikey Madison é certamente um dos pontos altos do filme. A atriz, que fez uma boa participação em Pânico 5 (2022) e é uma das protagonistas de Better Things (2016), uma das minhas séries favoritas da vida, se joga na pele de Ani e é hipnotizante. Em entrevistas, a atriz fala bastante sobre a experiência de se preparar para o papel. A parte relacionada ao trabalho sexual não parece gratuita durante o filme, o problema fica especialmente na reta final. Além da já citada graça excessiva nas cenas de violência contra a personagem, quando ela volta a tomar as rédeas da história em seus minutos finais, alguns fatores soam problemáticos e o roteiro se percebe claramente escrito por um homem. Em um dos últimos diálogos, há uma delicada conversa sobre estupro que também arrancou risadas da plateia em uma abordagem fora do tom da situação. Não duvido de que uma mulher poderia estar respondendo daquela forma naquela situação, mas o momento poderia ser melhor trabalhado para evitar a interpretação dúbia.

No mesmo diálogo, Ani escuta de outro personagem a frase “eu gosto de Anora mais do que eu gosto de Ani”. E é uma pena que esse vislumbre de quem seria a pessoa por trás da persona Ani se perca na subjetividade dos personagens de um filme em que a protagonista é deixada de lado e mal explorada em boa parte do tempo.

NOTA: 3,5/5

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Autor: Igor Pinheiro

Editor de vídeo e motion designer, roteirista e jornalista formado pela UFF. Viciado e apaixonado por cinema e televisão.

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